sexta-feira, 23 de novembro de 2007

A Graça do Cotidiano

Fazia muito calor. O sol escaldante incomodava a todos. O céu brilhante não registrava nenhuma chuva por vir no horizonte daquela tarde sem sombras. Somente o suor molhava minha pele. Pensava num refrescante banho morno, quase frio, quando uma motocicleta estacionou frente a minha casa. A campainha soou alto. Adiei o banho e fui atender o portão.
O motoqueiro estava de costas e não me viu chegar. Fiquei em silêncio observando o que ele fazia. Era jovem, usava boné e estava um tanto agitado. Enquanto abria a tampa do malote para pegar minha encomenda pude ouvi-lo resmungar:
--- Meu Deus, que calor insuportável! Que droga trabalhar nesse sol, que tempo maluco. E, ainda de boné , não gosto de boné, que saco!
--Olá, tudo bem aí?
O jovem entregador virou-se e olhou-me assustado. Ajeitou o corpo, libertou-se do boné e respondeu:
--Puxa, não é que está calor mesmo? Você até raspou sua cabeça...
Naquele momento, percebi que estava sem o lenço. Passei a mão pela careca e dei boas risadas. Acho que ele não entendeu nada. Entregou-me o embrulho, disse adeus e voltou ao trabalho.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Minha versão careca

Os últimos toquinhos de cabelo caíram todos. Agora, carrego na cabeça a marca registrada dos pacientes em tratamento quimioterápico. Uma careca lisa, fria e pálida. O visual assusta e comove. Trafego entre a realidade e a abstração. Enquanto meus olhos negam a ver além das aparências, minhas mãos frenéticas não se cansam de olhar o suporte minimalista instalado no topo de minha cabeça. Situação desesperadora! Sei que terei que atravessar esse vazio, mas antes não resisto, entro no caos de minha dor e choro silenciosamente as minhas perdas.
Quando me vejo no espelho, não me acho feia. Esquisita talvez, diferente com certeza. Por isso, posso compreender com naturalidade a incômoda sensação que causo nas pessoas quando me olham. O impacto é grande, pois a careca além de proclamar minha condição de doente, deixa-me com estampa de filme de ficção. No primeiro momento, rostos assustados explodem em lágrimas, outros em risos nervosos, muitos duvidam, não querem acreditar e alguns se calam. Passado o susto, vem a solidariedade e o consolo mútuo. Os amigos fazem brincadeiras, comparam-me a personagens como ET, Kojak, Sigoumey no filme Alien e tantos outros. Não me importo, sigo sorrindo.
O tempo acalma as dores do mundo. É verdade. A minha, pelo menos se abranda à medida que enfrento a fatídica realidade em que me encontro e, espero com paciência a natureza se refazer em mim. Todos os pacientes, cada um a seu tempo, encontram uma maneira própria de conviver e retocar seu visual. Uns aderem as perucas, outros aos bonés e chapéus. Eu ando careca pela casa e ao sair, gosto dos lenços. Eles são mais divertidos, leves, confortáveis, apresentáveis e protegem-me do sol.
Meus cabelos chegavam aos ombros e eram lindos. Mas assim como lembro, também tem sido habitual esquecê-los. Pode parecer estranho, mas descobri que com cabelos ou sem cabelos, meu retrato interior ainda sobressai com zelo e singulariza meu conjunto Corpo. Sigo meu caminho com lenços e identidade. Nem tão feia e esquisita, apenas diferente.
A você que me olha, não veja apenas a minha foto, aproxime-se, toque-me com sua mensagem, seu carinho.
Minha versão careca agradece.