quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A Máquina Zero

Não quero mais usar a touca, a sensação de conforto que ela fornece, não me sustenta mais. Sinto-me prisioneira, refém do medo e a camuflagem torna-me frágil. Preciso estar dona de minha cabeça, sobreviver aos arranhões e não ficar a mercê do acúmulo de emoções. Sofrimento maior, já basta o de ser portadora de neoplasia maligna.
A decisão está tomada. Se não dá para impedir o visual aterrorizante, posso ao menos acelerar sua estadia. Passo a touca adiante e mando vir a máquina zero.
Escolho ser atendida no ateliê, por três motivos básicos: privacidade, comodidade e por ser o local da casa que mais gosto. Não suportaria chegar ao salão de beleza causando espanto e dó nas pessoas e por menos, chatear-me com a curiosidade das perguntinhas indiscretas. É no ateliê, rodeada de arte que fico inteiramente à vontade e feliz.
É chegada a hora. Antes de assentar, olho-me no espelho rapidamente e num gesto meio louco, aceno um tchau quase que debochado para a imagem expressionista refletida à minha frente e saio do stress. O cabeleireiro não faz comentários, acha graça e eu vou junto nas risadas.
Fim de mais uma batalha. Movimentos rápidos e precisos concluem meu pedido. Nesse instante mágico, O Grito ( 1893 ), de Much deixa minha mente e a refrescante sensação de uma enorme bala de eucalipto, refrigera-me a cabeça e segue até a alma.
Meu novo visual é contemporâneo, moda nas cabeças de todo o Mundo. Sei que irei sem molduras até o término da químio, mas não me queixo. De certa forma, isso me conduz ao que realmente aparento ser aos olhos de Deus.
Assim que puder, farei Arte da minha cabeça, agora raspada.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O Grito

Esperar pela calvície vem sendo um martírio em minha rotina atual. Passo os dias , mais perdida que achada, sem vontade de aparecer e de ser vista. Aí de mim, que estou mutante!
A queda de cabelo não dá tréguas. Basta deslizar as mãos pela cabeça para o corte "joãozinho" ir se desfazendo em mechas por cada m² da casa. Enquanto, mechas caem, falhas surgem e o couro cabeludo vai lembrando a Caatinga Brasileira.
Impressionante a velocidade com que a químio nos desfigura e logo o nosso sofrimento.
De visual assustador, choro e faço chorar e por mais que pessoas tentem me ajudar, palavras não me consolam. A situação é aflitiva e doída. Sinto-me mal, incomodada, profundamente doente em ver-me assim, fragmentada. Um verdadeiro elemento surrealista capaz de ressuscitar Salvador Dalí. Com certeza, ele adoraria usar esse meu meu ícone em suas criações. Quanto a mim, sigo gritando.
-Socorrooooo, alguém tem um antídoto, aí?
Os gritos ecoam e uma bendita touca verde aparece pelas mãos de minha mãe e veste minha cabeça.
-Minha filha, o que os olhos não vêm, o coração não sente.
Penso no chavão e olho-me no espelho. O que não conserta, esconde. Não posso prever por quanto tempo, usarei o acessório. No momento, estou apresentável e tenho certo conforto. O gesto providencial de minha mãe consegue me acalmar.
-Valeu mãe, Obrigada!

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

O Espelho


Acordo em metamorfose e a cabeça inteira dói. Custo acreditar, mas a prova irrefutável da mudança repousa tranquilamente sobre o travesseiro de fronha verde. São centenas e centenas de fios de cabelo que num desenho gestual anunciam minha futura aparência.
Fecho os olhos, atônita, nego pensar e até existir....porém é fato, os medicamentos quimioterápicos não falham. Lágrimas escorrem de minha tristeza e se misturam ao emaranhado de pêlos. Deixo-me afogar nessa mistura esquisita por um bom tempo.
O fundo do poço é frio, escuro e totalmente inseguro.... a dor é grande, mas não maior que Eu. Abro os olhos, respiro fundo, refaço o semblante e decido sair.
De volta à realidade, descubro-me viva. O dia está lindo e quente e, viver é o que realmente importa para mim! Sento-me na cadeira e o vento me beija. Deixo que cortem curtinho, os meus cabelos.
Em pouco tempo, serei uma mulher careca.